A trajetória de Adélia Domingues ganha forma impressa no livro “Construída em Retalhos”, cujo lançamento está previsto para julho, mês em que completa 90 anos. A obra narra passagens de uma vida marcada por trabalho precoce, maternidade, perdas e uma retomada surpreendente dos estudos por meio da EJA, promovida pela Prefeitura de Florianópolis.
Com o apoio da professora de teatro Dóris Furini, a pré-venda já arrecada fundos para cobrir a impressão dos 150 exemplares previstos. A ação envolve familiares, amigos e a rede de alunos da UFSC que convivem com Adélia nas aulas e oficinas oferecidas no campus universitário.

Livro reúne memórias de luta e coragem
Adélia iniciou os estudos ainda criança, mas aos 14 anos abandonou a escola para trabalhar em uma fazenda. O tempo passou, os filhos nasceram, os maridos faleceram e, só após décadas, ela encontrou novamente o caminho da escola. O reencontro com a sala de aula foi motivado por um desejo guardado: contar sua própria história em um livro.
O título da obra não é mero acaso. “Construída em Retalhos” traduz a montagem paciente e resiliente de quem aprendeu a costurar a vida com os fios que teve. Segundo especialistas da área de gerontologia, atividades educacionais na terceira idade não apenas melhoram a qualidade de vida, mas estimulam áreas cognitivas ligadas à memória, linguagem e autonomia.
A obra se desenha como um testemunho valioso da memória social, articulando experiências individuais com a história de milhares de brasileiros que, por motivos econômicos e sociais, não tiveram acesso à educação na infância.
Velhice ativa como instrumento de transformação
A rotina de Adélia foge aos padrões esperados para alguém prestes a completar nove décadas. Continua frequentando aulas da EJA três vezes por semana. Coordena oficinas de fuxico nas manhãs de quarta-feira e ainda estende a atividade à comunidade no turno da tarde.
Nas quintas, sextas e domingos, a agenda se reparte entre teatro e a feira de artesanato na Lagoa da Conceição, onde comercializa suas criações manuais. O corpo ativo acompanha uma mente em permanente estado de aprendizado, fortalecida pela troca constante com jovens e idosos.
Morar sozinha não a isola. Pelo contrário. A rua, as aulas, os projetos e os palcos são seus espaços de encontro, convivência e expressão. A aposentada mostra que envelhecer pode significar ampliar os horizontes – e não reduzi-los.
Narrativa pessoal ganha dimensão coletiva
A história de Adélia, embora única, se conecta a muitas outras mulheres brasileiras. Mulheres que enfrentaram a pobreza, a exclusão escolar e a viuvez. Que criaram filhos sozinhas, migraram, recomeçaram. O livro se torna então um instrumento de partilha, inspiração e memória.
A alfabetização tardia de sua irmã gêmea, Zélia, também pela EJA, reforça que esse tipo de programa educacional cumpre papel social estratégico e deveria ser ampliado em todo o país. A trajetória de Adélia serve de exemplo para políticas públicas que unam educação, cultura e longevidade.
O número de exemplares previstos – 150 – talvez pareça pequeno, mas a força simbólica da obra atravessa essa escala. O livro de Adélia não é apenas sobre ela: é sobre o Brasil.

